Memórias de uma Errante foi escrito sob a forma de diário. No Japão, a forma conhecida como (wataku)shishosetsu tem bastante espaço e já faz parte da tradição literária, mas no Brasil é difícil aceitar uma narrativa na qual não há personagens, ou na qual o autor é o personagem. Na nossa tradição, a literatura se baseia na construção do personagem. O personagem precisa se manter de pé sem que haja uma intromissão excessiva do narrador. Mesmo que o narrador possa vir a ser um personagem, isso não significa que o autor seja esse personagem.
No caso de Memórias de uma Errante, a autora é a personagem central que emite idéias sobre acontecimentos, ou simplesmente os conta. Além disso, não foi originalmente escrito para o leitor, mas apenas como forma de manter suas memórias. Isso torna a compreensão mais difícil para o leitor. Para colocar o personagem de pé, o autor utiliza muitos recursos, sendo um deles o narrador. O narrador é aquele que coloca os fatos em ordem e da forma mais clara possível para o leitor.
Um diário não tem narrador além do próprio escritor que, como a princípio não escreve para terceiros mas para si mesmo, não se preocupa em ser claro ou explicar fatos. Enquanto leitora ocidental, eu busco uma narrativa que me apresente personagens. O autor e sua vida não podem ser mais importantes do que os personagens e a história que está sendo contada.
Memórias de uma Errante apresenta alguns personagens, que talvez por serem reais não conseguem se manter em pé dentro da narrativa. Eles entram e saem de cena e muitas vezes ficamos sem entender o que está acontecendo. Isso parece acontecer mais freqüentemente com os personagens próximos da autora. Alguns personagens que ela mesma desconhece ganham um pouco mais de descrição e quase chegam a ser personagens. Por exemplo a velhinha que vende soja em Kobe ou a moça que lhe oferece hospedagem em Chiba. Mesmo assim, tudo está sempre amarrado a figura central e não chega a existir uma ação.
A tradução de uma obra assim também se torna muito difícil. A própria autora diz em seus diários: Talvez fazer tradução seja como requentar o arroz e fazer um yakimeshi.
No original, os poemas tem mais beleza e a voz da autora e personagem principal tem uma força e uma dignidade que não transparece na tradução. Lendo em português é fácil acabar ficando com pena da autora e às vezes nos cansamos de suas lamentações. No original, suas lamentações são quase reclamações e ela parece tão forte que lemos seus problemas sem nos sentirmos mal.
Por enquanto somente a primeira parte de seus diários está traduzida para o português. Na segunda e na terceira parte podemos descobrir mais coisas que na primeira parte passam despercebidas. Um exemplo disso é a história de Taiko, que na primeira não é contada.
Sabemos apenas que ela deixou o futon e outros apetrechos com a autora para se casar com um tal de Kobori. Na segunda parte, temos todos os acontecimentos que sucederam o casamento. Tanto Handa, Yamamoto e Shono, quanto a própria Taiko que não consegue se decidir entre eles inspiram um sentimento de raiva na autora. Depois Taiko resolve se casar e sai de cena.
Memórias de uma Errante é uma obra importante porque conta a vida da autora. A autora fazia parte do proletariado japonês e consegue mostrar com beleza e dignidade um mundo considerado decadente. Me parece importante também o fato da autora ser uma mulher independente que conseguiu terminar seus estudos com o seu próprio sacrifício e que, talvez por não ter conseguido um homem em quem se apoiar, passa uma vida de dificuldades solitárias.
O Japão de entre-guerras passou por grandes transformações para conseguir acompanhar o desenvolvimento industrial no mundo. Foi então que as mulheres passaram a trabalhar em turnos de até 18 horas por dia em pequenas fábricas para poder suportar o imperialismo japonês. Por isso também houveram transformações no que diz respeito a posição social das mulheres. Hayashi Fumiko estava na ponta dessas transformações e consegue retratar bem tudo isso. Embora ela seja independente e goste de sua vida de eternas viagens, ela ainda tem o sonho de se casar ou de ter um homem que seja somente seu e vive com esse conflito.
Os homens com quem ela se relaciona são normalmente possuidores de grande cultura, mas pouco dinheiro. Ela chega até mesmo a sustentá-los com seu trabalho em cafés. Sua vida de andanças parece às vezes sem razão de ser e o leitor tem a vontade de lhe pedir que pare e se instale de uma vez em algum lugar. Temos a vontade de pedir que ela encontre um emprego mais fixo e que não passe mais fome. Ela no entanto não se contenta com os empregos em fábricas de celulose, tecido ou cafés por onde passa. Talvez fosse esse sentimento de insatisfação que muitas mulheres que sustentaram a economia agressiva do Japão da época tivessem, sem no entanto abandonar tudo para recomeçar como faz a autora.
A autora consegue instigar algo que ainda continua presente nas mulheres que precisam trabalhar na sociedade de hoje. É necessário se sujeitar a desempenhar atividades desinteressantes para podermos nos sustentar. No entanto, temos ainda um sonho: fazer o que realmente gostamos. Enquanto vivemos esse dilema entre nos vender barato ou tentar um sonho que às vezes parece impossível, nos tornamos fortes e os homens não conseguem ainda lidar com isso. No entanto, a autora sente a necessidade física de tê-los.
O que pode parecer auto-destrutivo na narrativa de Hayashi Fumiko é na verdade a tentativa de alcançar a liberdade como mulher dentro da sociedade. A independência econômica é parte desse caminho. Sim. As mulheres precisavam trabalhar para que o país se tornasse mais forte. Mas trabalho braçal não era tudo com o que elas queriam contribuir. Hayashi Fumiko é um exemplo de alguém que conseguiu deixar a sua marca proletária na literatura japonesa.
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